Fazenda 31 de Março

Foto de arquivo. Cidade de São Paulo.

No dia 31 de março de 1964 houve um golpe infausto na alma do povo brasileiro. Começou uma tortura física e psicológica no Brasil. Sempre existiu tortura, mas o país entrou na institucionalização da barbárie, tanto a oficial como a dos centros clandestinos de tortura.

 

Na capital de São Paulo, na região afastada de Parelheiros e Marsilac, havia a Fazenda 31 de Março. Até o nome deste lugar é assombroso. O delegado Fleury e seus asseclas se divertiam neste sítio como alguém que vai para uma casa de campo desestressar com os amigos; entretanto, a diversão era torturar e assassinar seres humanos como alguém que vai à zona rural caçar tangarás.

 

Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones nasceu no sul do país. Nos anos 60, foi morar e estudar no Rio de Janeiro. Casou-se com Stuart Edgar Angel Jones, filho de Zuzu Angel. Edgar foi assassinado com a boca enfiada em um cano de escapamento de um jipe militar. Nunca encontraram seu corpo. Zuzu Angel procurou o filho incansavelmente e, por causa disto, também foi assassinada pelo regime em um crime jamais resolvido. Sônia Maria, que também havia sido presa, acabou sendo absolvida pelo tribunal militar devido portaria do imponderável.

 

Sônia Maria Jones, viúva, exilou-se na França onde progrediu sua carreira intelectual. Decidida a lutar e resistir contra o regime que assolava a liberdade em sua terra natal, voltou ao Brasil onde começou a trabalhar na clandestinidade. Conheceu Antônio Carlos Bicalho Lana, que viria a se tornar seu companheiro.

 

Algum tempo de relógio depois, Sônia e Antônio foram descobertos por agentes do DOI-CODI do II Exército, em Santos. Abordados no litoral paulista, levaram-nos com destino à cidade de São Paulo. O coronel Canrobert Lopes da Costa estuprou Sônia por 48 horas no DOI-CODI do Rio de Janeiro com o uso de um cassetete, ela teve hemorragia interna. Debilitada, enviaram-na novamente a São Paulo, ao DOI-CODI/SP. Deceparam-lhe um de seus seios.

 

Sonia Maria e seu companheiro Antônio Carlos foram encapuzados, colocados dentro de um Fusca de Fleury, amordaçados, cortando quilômetros e quilômetros entre solavancos da zona sul paulistana até a Fazenda 31 de Março, na zona rural de Parelheiros e Marsilac.

 

Torturados e mortos nas dependências de diversão dos agentes do regime, levaram os corpos até o bairro de Santo Amaro e simularam um tiroteio com balas de festins sendo atiradas nos cadáveres já há muito sem vida. Ambos foram enterrados em um cemitério clandestino na zona leste da cidade como indigentes. Apenas décadas depois que descobriram quem eram aqueles dois enterrados sem nome e sem história, pois havia uma história. Era parte da história do Brasil, de uma lutadora brasileira: Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones.


Por Ricardo Novais 

Crônica: A indolência do caso Robinho

 

A visão de Clarice.


Para o torcedor santista o caso Robinho é bem impactante. Não me cabe julgá-lo, mas a Justiça sim; e esta o condenou por um crime terrível. Embora não me incumba aqui o papel de jurista, moralista ou analista de notícias da imprensa, o crime de Robinho não atingiu apenas a vítima do estupro coletivo, é um dolo na alma de toda mulher, uma vez que desperta um gatilho de todo o machismo secular impregnado na sociedade. Atinge as mulheres de maneira psíquica e nos homens causa reflexão, pelo menos, deveria; deveria causar algum amadurecimento de personalidade e caráter – talvez, chegar à sensatez e ao equilíbrio.

 

Eu não sei se o cidadão Robson de Souza vai amadurecer; torço para que sim, que o faça e que recupere a sua dignidade, independentemente de estar sendo, somente agora, obrigado a pagar pelo que fez. Eu digo isto neste parágrafo e escrevi um grande prenúncio, no parágrafo anterior, para deixar claro que aqui, nas parvas linhas deste texto, estou querendo emitir a minha impressão de torcedor, torcedor do do Santos Futebol Clube, sobre o atleta Robinho; ainda porque, como já disse, não vou meter o nariz nas decisões judiciais, mesmo acertadas, e não sou moralista para “chutar cachorro morto”. Portanto, o caso Robinho é uma mácula para quem é torcedor santista.

 

Robinho foi o maior protagonista do título mais importante para Santos dos últimos 40 anos; ele foi o “Rei das Pedaladas”. O título do Paulista de 84 é um marco na memória de quem viu, e de quem não viu também, pois era o "último triunfo alvinegro". Dezoito anos depois isso foi quebrado. Em 2002 os Meninos da Vila recolocaram o Santos Futebol Clube no caminho das glórias, de onde sempre teve presença cativa e eterna, e o jogador Robinho foi como um anjo pedalando em nuvens, dentro dos sonhos do torcedor que sofria há tantos anos; sim, o futebol não me parece só um esporte, é, por vezes, uma poesia que amortece as angústias da vida.

 

Mas e agora, torcedor peixista? Eis que o jogador Robinho se transformou em anjo caído na história do clube e de todo o desporto; se negar os seus feitos históricos e conquistas pelo Santos Futebol Clube e pelo futebol é uma tarefa quase impossível, também é provável que jamais algum torcedor, apaixonado santista ou não, com um mínimo de consciência de vida e de caráter, possa declará-lo ídolo do esporte ou de lugar algum; ora, a justiça é para todo mundo, para a sua esposa, para a sua filha, para a sua mãe, para todas as mulheres que têm os seus direitos desrespeitados e suas honras atacadas todos os dias.

 

Por Ricardo Novais

Equilíbrio

O grande bar, de Alberto Sughi.

Não eram dez horas ainda, mas a noite parecia acabada. Ah!, leitor, uma noite encerrada precocemente é como o amor sem o gozo. A cidade é feita para se apreciar, sair de casa, andar a pé pelo bairro, parar em um bar. Preencher a vida com rostos desconhecidos de todas as cores e idades.

Parei em frente ao bar do Juarez, não entrei. Fiquei a olhar com insegurança as ruas ao redor, cheias de bares apinhados de gente, homens e mulheres desconhecidos fumando nas calçadas, copos tilintando beijados pelas mesmas bocas, bocas transmitindo as mesmas conversas. Não eram dez da noite.

Entrei no bar. Pode dizer-me ambíguo, leitor. Fui direto ao balcão, bebi uma dose e chegou uma mulher. Fomos para uma mesa nos fundos do bar, a única que vagou rápido. Em cinco minutos, eu olhava para uma mulher em prantos acusando-me de crápula; não julgue à toa, dona leitora; a coisa pareceu-me triste, a noite terminando precoce...

Há muito tempo, um velho bruxo dizia que existem pessoas que choram pelos espinhos na rosa, mas há outras que sorriem porque entre os espinhos colhem-se as rosas. Possível que o pensamento não seja deste jeito tão rude, mas é que não tenho a elegância daquele bruxo, e também porque a paciência da escrita deste tempo é mais curta do que outrora.

Sim, fui um crápula. Saí do bar. Sozinho. A mulher ficou, solitária, terminando a cerveja sem álcool à espera de alguma boa companhia. Andei pelas mesmas ruas entre os mesmos bares apinhados de gente de todas as idades. Entre todos os desencontros, encontrei boa companhia em pub de ladrilho descacado. Bebemos, rimos, cantamos; bebemos outra vez... A noite precoce estendeu-se um pouco mais, e mais, até que virou dia.

- O que você está pensando?

- Na bebida colorida desta cidade!

- É tão simples...

Há coisas que me fascinam demasiadamente. Os sorrisos fracos entre os goles de cerveja e a névoa do cigarro que não se fuma pesam às costas daqueles que se conhecem bem, entretanto, entre aqueles que tenham se visto pela primeira vez há poucos instantes todo momento é único e futuro.

- É tão simples...

Enquanto alguém lamenta, caro leitor e querida leitora, outra ri; o mundo é perfeito. Seria um tédio só se tudo fosse lágrima, mas também sorriso o tempo todo seria fútil e débil. Não acha? O equilíbrio é a felicidade da vida, em sua variedade humana, entre lamúria e dança, ressaca e impulso; um copo sendo cheio por uma garrafa brilhante em um bar qualquer desta megalópole barulhenta, cinza e de passos anciosos.

Por Ricardo Novais

O funeral do Rei Pelé

Foto do autor.
        
        Escrevo é para esclarecer as emoções. Estive no velório do Pelé. A escrita vem como uma necessidade, quase sobrenatural, de descrever os sentimentos; nem sempre, é verdade, mas neste caso é este o sentido. Atribua-se ao imponderável.

Tenho um amigo que disse que “um rei não morre, apenas repousa”. Eu não conheci o Pelé, mas já o vi das arquibancadas; ele estava no camarote. Lembro-me de ter ficado feliz de vê-lo, mesmo que de longe; um súdito do rei contemplando sua alteza real do futebol.

Hoje foi um dos dias mais inesquecíveis da minha vida. Eu me lembrei de meu saudoso pai contando quando ele viu o Pelé jogar no Pacaembu em 1974, lembro dos olhinhos tão bondosos e admirados dele reconstituindo cada jogada do "maior de todos", do "atleta do século"; sempre sinto a presença de meu pai, mas hoje foi mais forte. Eu me lembrei de um amigo santista fanático que, encontrando-o recentemente, disse ser o dia do título do Santos no Brasileirão de 2002, qual estávamos juntos no Morumbi, o segundo dia mais feliz da vida dele; o primeiro é do nascimento da filha. Recordando, desordenadamente, cheguei em outro amigo santista, também fanático, que faleceu quando estávamos numa viagem juntos com vários amigos em comum. Ele morreu nos nossos braços, literalmente, pois o levamos, às pressas, para o hospital; entre suas últimas palavras me recordo ter ouvido um pedido para "seguir acompanhando o nosso Peixe".

  Lembrei-me de tudo, de nada, mas de tanta coisa. Memórias descompassadas que fizeram lembrar que a dona Celeste, mãe do Pelé, está viva com mais de um século de vida; não existe coisa mais sublime que mãe, isto eu sei por causa da minha própria mãe e seu amor incondicional.

    Eu já estava no litoral desde antes do réveillon. Estava com a família no Guarujá e marcamos de encontrar um corintiano lúcido e democrático na Vila Belmiro por volta das nove horas da manhã... Antes, percebo que o leitor torcedor e a leitora amante de futebol cantam por uma explicação. Aí vai o esclarecimento: Pelé marcou 1.283 gols, sendo este feito reconhecido pela Fifa, e o Corinthians foi o time que mais levou gols dele; de modo que um corintiano ir até a Vila Belmiro prestar homenagem ao seu maior carrasco só pode ser a lucidez da sabedoria. Pelé representa o acesso à arte da democracia do esporte.

    Trânsito terrível! Para andarmos menos de 20km até Santos demoramos mais de uma hora e meia. Atravessamos a balsa de Guarujá a Santos com ansiedade de quem tem pressa.

    Quando a balsa estava quase atracando na Praça Coutinho, que logo me fez lembrar da extraordinária dupla Pelé e Coutinho, parecia que íamos cair no mar. Não caímos, a camisa do Santos é pesada demais para sucumbir. Seguimos então para o final da fila que estava indo para a entrada da Vila Belmiro. Caminhando, lado a lado, santistas e corintianos, adultos e crianças, jovens e velhos, vivos e mortos; todos os torcedores de todos os times apaixonados pelo futebol.

         A fila era quilométrica. O calor era forte. Sol a pino, passava já dos 30°C antes do meio-dia. Mas estava tudo bem. Vínhamos de uma passagem de ano em família bem legal, um réveillon ensolarado e divertido. Assim, na fila tudo era descontração. A gente conversava, encontrava outros torcedores santistas e de outros times, falávamos sobre lembranças do Pelé, alguns se lembravam de recordações reais e muitos apenas de imaginações baseados nos registros históricos ou nas imagens emblemáticas.

      Tinha também torcedor do Vasco naquela fila. Isto me fez lembrar de meu irmão, que é vascaíno doente e vive repetindo que o Pelé era cruzmaltino quando criança em Três Corações. Avistei torcedores do São Paulo, do Corinthians, Palmeiras, Fluminense, Flamengo, Botafogo, Bahia, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético, Paissandu, Ceará... Do Boca e do River... Do Los Angeles do basquete americano... Pareceu-me ter visto todos times e todas as cores. Mas pode ser só imaginação. Não sei quantas camisas esportivas eu avistei. O mar branco do alvinegro praiano tomava conta de toda a visão.

         Havia gente do Japão nos arredores do estádio, conversando, provavelmente, em japonês; eu não entendia nada, mas tinha umas letras japonesas que deveriam significar “Pelé eterno”. De repente, apareceu um argentino. O cara estava com a camisa da Seleção Argentina, nas costas estava a 10 do Maradona. Juro por Deus! O cara chorou. Um torcedor paramentado de México passou pela rua. Estávamos olhando o mexicano, ele passou no sentido do final da fila, que se perdia de vista dobrando os quarteirões. Depois um com as cores da Colômbia, outro da Bolívia. Ingleses se misturando com gente de São Vicente ou de Osasco, franceses com quem veio do ABC ou do Ipiranga, Vila Mariana, Santo Amaro, Grajaú, Parelheiros e descendo para a Serra do Mar novamente a Peruíbe, Pedro de Toledo, gente do sul, gente do norte, nordeste, centro-oeste. Assim foi numa mistura de povos, uma fila de gente em um funeral.

        Mas não pense a dona leitora que era um clima triste, era mais clima de emoção do que de tristeza. O choro era quase uma homenagem natural e leal. 

      Eu tirei foto de quase tudo durante o percurso desta fila para entrar no templo da Vila Belmiro. Eu bebi umas cervejas, contava piadas, ouvia histórias, relatos. Um senhor, no auge de seus setenta e muitos anos, passou, vagarosamente, fazendo graça que a fila já estava em Peruíbe. Uns falavam de outros assuntos pessoais, de preços das coisas, de viagens, do dia de folga no trabalho; assuntos diversos para passar o tempo. Nem parecia um velório. Por muitos momentos me confundia achando que era um jogo festivo do Santos FC. Tinha hora que a gente se esquecia de tudo e só sorria, alegre como se nem lembrasse que o Pelé morreu.

     Tudo bem que um rei não morre, mas o senhor Edson Arantes do Nascimento estava morto. Quando eu entrei no portão 3, que é a aquele da faixada histórica e principal, as coisas mudaram. O clima mudou. Um frio na barriga apareceu. Eu fui fotografando tudo que conseguia pela câmera do celular, mas só até na frente do caixão. Assim mesmo, foi difícil. O sol era muito forte, eu tinha bebido e a imagem do Pelé no caixão acabou comigo. Parecia que ele estava dormindo. Tive vontade de chegar perto, para ver se, por acaso, ele acordava. Ele estava dormindo naquele caixão, um sono calmo e sereno.

      Guardei o celular e chorei. Estava de óculos de sol, então nem sei se alguém percebeu; talvez minha mulher tenha percebido, ela percebe tudo...

       Fora do estádio eu estava bem arrasado. O clima tinha mudado mesmo. Parecia que a balsa da travessia Santos-Guarujá tinha dado um tranco forte e eu tinha caído no canal do estuário sendo depois tragado pelo mar.

       A sensação de ver o Rei do Futebol dentro do caixão foi a de ver seu time do coração levando um gol decisivo, tipo aquele gol que o Tevez marcou para o Boca Juniors em cima do Santos na final da Libertadores de 2003.

         Só que tive sorte e encontrei o sósia do Pelé. Eu me alegrei, achei engraçado na hora. Este sósia é o Seu Nicanor, ele estava lá, como milhares de almas torcedoras, prestando sua homenagem ao Rei do Futebol. Seu Nicanor depois disse que foi alcoólatra e o Pelé salvou a sua vida. Não sei direito como se passou a história que ele contou, nem a veracidade dela, mas sei que pedi para tirar uma selfie com o Seu Nicanor e percebi que o dia ainda seguia radiante como um gol de Pelé.

Por Ricardo Novais

Mineiro encantado


João Guimarães Rosa, mineiro da central mineira, com os pés para o norte, dizia que ‘as pessoas não morrem, ficam encantadas’.

Sempre que alguém querido fica encantado, lembro-me da crônica de Rubem Alves, outro mineiro que, brilhantemente, intrigou-me com suas perguntas inesperadas que massageiam tanto a nossa alma desavisada. Dizia ele, “(...) há dores que servem a nada. A dor da morte serve para qual ser humano? ”. Nenhum, pensei. Embora sempre exista alguma serventia para a dor, mesmo a mais inesperada.

Pois que ao terminar a leitura daquele questionamento tão profundo, alcancei que a resposta pouco importava. A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. E isto é um alívio danado, mais até do que outra compreensão universal, e me faz crer que meu pai, outro mineiro de coração de doce de leite lá de acolá do Vale do Rio Doce, já lhe estendeu a mão, em sussurro de amizade tranquila, dizendo-lhe que a lembrança e o amor são eternos como um sobressalto encantado que não apresenta ameaça.

Por Ricardo Novais

Três vezes me negarás


Muitas vezes se usa palavras frequentes. Frequentes como as diversas rotinas que se cruzam todos os dias. O amigo leitor e a querida leitora, tão habituados às rotinas, tenham em mente que este conto se trata de coisa tão rotineira como feijão-com-arroz. Embora nem sempre haja feijão e nem arroz no prato de todos; ao contrário do que pensa o excelentíssimo presidente da república.

Excrescências de ideias rasas acerca do enigma da fome à parte, era hora do almoço. Saí para almoçar, sozinho, com os olhos na tela do telefone celular. Pelas redes sociais, tentei me inteirar dos acontecimentos tragicômicos que teimam em assolar o país em suas manhãs cinza-escuras.

Desci do elevador já dentro do shopping center e, poucos passos, ainda com os olhos dentro da tela das redes sociais, cheguei à praça de alimentação. Entrei na fila do restaurante fast food, pedi uma mumificação comestível qualquer pelo número de ordem ou pelo nome descrito em inglês, não me recordo, e aguardei. Poucos minutos, a bandeja estava pronta com aquela gororoba publicitária.

Ao procurar um local para me sentar na praça de alimentação, irritou-me não haver uma mesa vaga. Tive de me sentar naqueles bancos com balcão alto, e ainda ao lado de uma senhora com uma criança.

Sabe, dona leitora que tem filhos, deixe de levar seus rebentos aos shoppings; leve-os ao parque, ao cinema, à igreja, à exposição da Tarsila do Amaral, ao bar... Oh, não, amiga leitora! Não falo em tom de ameaça ou deboche, acredite! Embora este autor que vos escreve não tenha dons pedagógicos, neste momento, a escrita está em minhas mãos; de modo que, sobremaneira, poder-se-ia crer que a educação das crianças estará, irremediavelmente, comprometida se a escola delas for o pátio de um shopping center.

Sentado naquele banco com balcão alto naquela praça de alimentação tão vulgar, iludindo as retinas nas balofas redes sociais e almoçando aquele lanche quase que na velocidade da luz, demorei alguns segundos a perceber que havia se aproximado um homem.

- Boa tarde! Desculpe... O senhor pode me pagar alguma coisa de comer? Estou...

- Desculpe! Não tenho dinheiro, estou só com cartão...

- Pode ser qualquer coisa... Tenho fome. Estou...

- É que não tenho. Só estou com o cartão mesmo.

- Mas pode comprar ali na lanchonete... Lá fora a coxinha é dois reais. É que estou desempregado. Estou...

- Desculpe, não tenho!

O homem balançou a cabeça e foi indo embora. Fiquei olhando ele se afastar, devagar. Trajando uma vestimenta de cunho social: uma calça azul-escura, camisa branca de manga comprida, sem paletó, não alcancei os sapatos, mas enxerguei a mochila magra e surrada nas costas. Ia indo, indo... Ele pediu ainda comida em mais uma mesa, e também teve seu pedido negado. Então, de repente, sumiu na multidão.

Momentaneamente, distraí-me e tornei os olhos ao smartphone. Mas algo aconteceu. Deu-me um estalo, violentíssimo; era como se eu tivesse levado um soco na boca do estômago.

Antigamente, eu via um céu tão azul. Nunca mais o céu foi tão azul. O céu ficou cinza e o nada existente é pedir demais.

Em meio a uma confusão de sentimentos, propriamente humanos, onde a maldade se avulta menos do que a covardia de ser indiferente, rompi o portão da emoção genuína. Tal qual àquela passagem bíblica: Três vezes eu havia negado aquele homem, um pedinte com fome.

Joguei o resto da comida fora e guardei a bandeja. Descobri cinco reais perdidos na carteira. Levantei-me, de certo, um pouco desorientado, e fui atrás do homem para saciar sua fome. Como imaginas, quem ainda tem estômago para ler estas parvas linhas, não o encontrei.

Dei três voltas incompletas na praça de alimentação, fui até o extremo do corredor das inalcançáveis lojas de joias e saí pelo outro lado do shopping. Aquela caça deixou minha vista fadigada. Nisto, outra vez, numa franca emoção dos que sabem que ter benevolência é ter audácia, quase derrubei uma lágrima – ora, sabemos que toda emoção vem da paixão fugaz; de maneira que por pouco uma lágrima comprida não escorreu de cara com conhecidos naquele lugar de frias paredes de mármore.

Repentinamente, uma angústia serena me acometeu. Percebi que há coisas tão imponderáveis que não conseguimos compreender, como se estivéssemos dentro de um romance russo. Vivemos como os “Os irmãos Karamazov”, onde a nossa personalidade é formada por um lado místico, por um lado globalista, por outro lado selvagem, ainda sendo composta por um lado oprimido e, por fim, por um lado tirano.
  

Tão adiantado foi o fracasso da empreitada aqui contada, que é crucial levar a cabo este texto. Se não neste ponto final, nesta vírgula. Ainda porque o horário do almoço findou-se; e as tardes de trabalho também são cinzas nesta cidade. Mas antes de ir-me deixo diante do leitor um espelho, e assim revelo o personagem cardinal deste conto.

Por Ricardo Novais

Vitrine

Jean Baptiste Debret.

Almoçávamos uma suculenta feijoada em um dia bastante ensolarado. O restaurante se localizava em uma região badalada da cidade, onde o passado, por certo, se alimentava de feijoadas menos deslumbradas. 

- Vamos tomar uma cerveja? – perguntei à Clarice que estava sentada ao meu lado, mas tinha os olhos perdidos pelo mundo.

- Sim, Heitor. Vamos, está quente – respondeu-me depois de uns segundos irritantes.

O amigo leitor que aprecia uma cerveja gelada que brinde comigo neste momento, pois a seguir o conto poderá ficar pouquíssimo saboroso e então torço para que o amigo tenha estômago de avestruz para lê-lo até o fim. A dona leitora eu desejo bom apetite!

Vá lá, ânimo! Tudo aconteceu em pouco tempo. Avistei um homem, maltrapilho, típico cidadão não contado no Censo do IBGE, parou à entrada do restaurante e então um segurança, enfiado num terno preto, naquele calorão, afastou o maltrapilho da passagem dos clientes. O sujeito, que definitivamente não era bem-vindo ali, permaneceu ao lado da entrada, em frente à vitrine que dava para o hall do salão de almoço.

Não tenho certeza se de onde ele estava conseguia ver dentro do restaurante, mas eu, apreciando o espetáculo, conseguia vê-lo quase perfeitamente; lá estava ele, parado, maltrapilho, provavelmente esfomeado.

- Clarice, eu acho que aquele homem quer comer...

Ela olhou de relance e respondeu sem muita vontade:

- Sim, Heitor. Deve estar com fome.

Vendo a apatia de Clarice e dos outros clientes do restaurante com relação à gastronomia alheia, acovardei-me. Mudei a visão, olhei para o celular, depois peguei o pote de pimenta, mexi no garfo, na faca, limpei-os um no outro e levantei o copo de cerveja... Bebi um longo gole. Mas tornei a visão. O homem maltrapilho lá estava, parado, ainda, imóvel como o cardápio pendurado na parede a exibir o mostruário de pratos de comida sofisticada. Sob o sol e refletido pela luz do meio-dia que batia forte na vitrine, o homem maltrapilho era parte da mobilha ou da decoração do ambiente.

Levantei-me. Fui até quase a porta do restaurante, olhei para o maître e retrocedi virando à direita no sentido da toalete. Mijei a cerveja, lavei as mãos, olhei-me no espelho. Tive ânsia de vômito e precisei vomitar a feijoada toda na pia daquele banheiro espelhado. “Por que diabos esse mendigo não me sai da cabeça? Porra! Esse filho da puta deve estar com uma fome do caralho! Foda-se!”, desgraçadamente, eu pensei isto, leitor, ou neste sentido, porque as ideias estavam atrapalhadas uma em cima das outras e não sei se pensei exatamente escrevi aqui; foi tudo muito rápido e, talvez, eu tenha também pensado muito alto porque um senhor, de camisa polo bege, qual pendurava um óculos esverdeados, olhou-me de cima a baixo, balançou a cabeça e riu discreta e cinicamente – tanto assim que só percebi esta atitude cínica dele porque eu já havia bebido bastante e todo bêbado é cientista social.

Voltei à mesa, olhei para Clarice, que estava entretida em outro mundo olhando para a tela do celular. Nada eu disse e ela nada percebeu, ou ao menos não quis dizer se percebeu como aquela feijoada tinha me afetado e me deixado atordoado; olhei para fora daquele salão, lembrei-me de um velho autor que dizia que as vitrines dos restaurantes chiques refletem os esfomeados, os esfarrapados e vale acrescentar ao pensamento que também espelham a desgraça de um mundo que sofre de inanição.

Alcancei a visão na vitrine daquele restaurante e não vi mais o esfomeado e maltrapilho que lá estava há pouco, parado, aguardando a migalha de uma mão invisível. Aquilo me entristeceu, por pouco tempo. Ao fim de cinco ou seis cervejas, eu havia me esquecido do maltrapilho e já mal me lembrava da vitrine reflexiva de sombras. A indiferença coletiva havia retornado à mesa solitária para nos fazer companhia.

Por Ricardo Novais

Sessão espírita

Imagem de Internet.

Os negócios não iam bem. Eu era formado recente, e escritório de advocacia tem que ter clientela. Minha clientela era a de meu sócio, o doutor Jader Zanzone. Doutor Jader era um velho de sessenta e poucos anos, muito branco, quase pálido e calvo, que era pai do Marcos, um colega meu da época da faculdade; como o Marcos foi morar na Europa, indicou-me de sócio minoritário do pequeno escritório de seu pai.

- Vamos dar um jeito, meu jovem! – dizia o Doutor Jader, sempre com um sorriso bonachão.

Verdade é que desde que o nosso maior cliente, o Bingo Zona Sul, findou na contravenção, entramos numa crise financeira. Os legisladores brasileiros cismaram que o jogo de bingo deveria passar de jogo de senhoras para jogo de azar. Azar o meu!

Acontece que o Doutor Jader não estava nem aí para aquele escritório, ele era rico e dono de fazendas no interior. Mas se compadeceu, talvez por mim, talvez pela meritocracia de fazendeiro ou ainda pela pura influência de seu melhor amigo, o Doutor Pedro Moura. Doutor Pedro era um advogado gaiato, também deveria ter passado dos sessenta anos, mas não aparentava mais do que quarenta. Era um senhor negro de barba branca, sempre alinhado em um terno cinza risca-de-giz e sapatos envernizados. Ele também era rico, e metido a líder espiritual.

- Vamos no centro espírita... Você vai conosco! Sua vida vai melhorar cem por cento, filho! – dizia-me convicto o Doutor Pedro.

- Vai mesmo, meu jovem! É uma coisa inexplicável, diviníssima! – completava Doutor Jader, sempre sorridente.

Eu engoli minha descrença e os acompanhei. Era uma sexta-feira, passara das dezoito horas. Entrei no local, muita gente vestida de branco. Apenas eu metido em um terno preto bem vagabundo. Doutor Jader e Doutor Pedro estavam alinhados em ternos caros e cinzas, possivelmente de grife italiana... Difícil recordar-se de tudo.

De repente, cessou a sessão comunitária. As pessoas dispersaram, como fantasmas. Então fui levado a uma sala, sozinho. Entrou um senhor. Em um primeiro momento, pensei ser o Doutor Pedro, dada a fisionomia, mas as vestes dele eram brancas; parecia até que usava uma batina.

O homem entrou fumando um charuto. Aquilo me incomodou, um pouco, mas eu nada disse. Um dialeto ininteligível começou. Lembrei-me dos padres católicos do catecismo que, em dado momento da cerimônia religiosa cristã, também falavam uma língua próxima e incompreensível; naquela época, eles diziam que era Deus falando com seus fiéis.

O negro, vestido de branco, fumando um charuto asfixiante, também falava a língua de Deus; pensei. Pensei, nada disse, outra vez. Controlei-me, mas algo estranho ocorreu.

A porta se abriu. Doutor Jader, branco como um fantasma bonachão, entrou segurando em sua mão direita uma garrafa de pinga, dessas de marca ruim, e na outra mão ele trazia uma galinha, uma galinha preta; pretíssima! Ele a segurava pelas asas e ela esperneava em desespero. Havia também entrado um porco, rosnando forte e todo arisco. Um suor frio correu sobre meu rosto. O mestre espiritual jogou sal grosso e batatas por todos os cantos, pegou uma faca grande e a fincou no peito da galinha preta. O sangue jorrou. Tive mais asco do que pena da galinha.

O porco lambia o sangue, eu quis ir embora. Não me deixaram sair, já estava terminando.

É triste ter que contar, leitor, mas é necessário ser fiel ao conto; é de meu ofício, doa ao leitor que doer. Perdoe-me por quaisquer constrangimentos, caro leitor e querida dona leitora. Nem todo lance de vida é prazeroso, feliz ou adequado aos costumes da civilidade. O fato é que o porco parecia estar possuído pelo demônio, dado aos gritos horríveis que dava cuspindo batatas, mas poder-se-ia também dizer ser uma manifestação de Deus. Eu sei que o mestre espiritual, ainda esfumaçando o lugar com aquele maldito charuto, dizia algo baixinho, sussurrando em homilia; Doutor Jader repetia ao estilo do terço-do-rosário. Por um breve momento, julguei ser uma sinfonia diabólica, devido a tanto sangue, penas pretas, batatas masticadas e cuspidas em formato de tridentes; no entanto, logo percebi que eu não estava ameaçado.

Nada era possível se compreender naquele altar, exceto que o porco chafurdava no mar de lama formados pelo sangue, cachaça e batatas; que focinho suíno aterrorizante! Por fim, repentino, um silêncio tomou conta do ambiente. Os dois homens fecharam os olhos, o porco parecia estar desmaiado e a galinha já não mais agonizava. Deram-me sete velas, cada uma de uma cor que, naturalmente, não me recordo quais eram.

Depois das orientações sobre as velas, fui para casa. Dormi mal naquela noite, tive pesadelos horríveis com porcos assassinos cuspindo batatas quentes mortais e com galinhas sendo dilaceradas por guardas do inferno. Logo cedo, acordei com minha mãe, católica apostólica romana, jogando as velas no lixo, irritada, rezando para que eu me firmasse na vida; desfez-se assim o trabalho espiritual. Há coisas que as religiões não explicam, mas é permitido competirem em meio à nebulosidade pela falta do aclaramento.

Como o conto precisa terminar, mesmo contra minha vontade, digo apenas que me demiti do escritório. Arranjei outro emprego longe dos doutores espirituais, e fiquei sem saber se sangue de galinha preta, misturado com cachaça, causa ressaca em porco ou se as penas pretas são eternas nas memórias do povo de Deus.

Por Ricardo Novais

O caso do bar

Edouard Manet - óleo sobre tela - 1864.

Entrei em um bar e, enquanto aguardava amigos para o happy hour, fiquei a observar dois homens que discutiam sobre política na mesa em frente. Discutiam tão alto que era possível ouvir com exatidão o motivo do entrave.

- Você é idiota, Carlos! É claro que o governo neoliberal traz progresso ao país...

- Não, senhor! O neoliberalismo enrique uma casta e o povão fica na merda! O nosso país deveria seguir a política dos países nórdicos...

Era uma discussão tão superficial que logo me desinteressei. Menos que um quarto de chope, os meus amigos chegaram. Alguma bebida, risos e piadas ao estilo do mestre Ary Toledo depois e eu já estava meio bêbado; meio bêbado é um eufemismo, caro leitor, já que não existe ebriedade pela metade.

- Então você não acha que o campeão de 87 é o Flamengo? – questionei um.

- Claro que não, Heitor! É o Sport do Recife...

Embora fossemos trintões, a nossa discussão era sobre futebol e coisas relacionadas ao ambiente de garotos da 5ª série.

De repente, olhei para frente e vi os dois camaradas que estavam discutindo política saindo do bar, juntos e abraçados, porta fora. A dona leitora bem sabe, a curiosidade alheia é a salvação do tédio do espelho. Então chamei um garçom e lhe perguntei se sabia quem eram aqueles dois.

- Não sei, senhor. Mas acho que se conheceram hoje. Eles chegaram antes do senhor... Bem, quando eles chegaram eu ouvi eles falando... Apresentaram-se formalmente... Acho que tinham marcado o encontro pela internet. Por quê?

- Por nada.

Acabei de beber, dei um abraço nos meus amigos e saí do bar. Poucos metros, vi alguém caído na calçada. Aproximei-me, já havia umas cinco ou seis pessoas envolta. Reconheci o sujeito agonizante na calçada, era um dos homens que estava no bar discutindo política, jaz moribundo; não tinha sinal do outro.

Um senhor velho, de barba branca bem rala, que parecia velar o local, abaixou e sumiu o relógio do morto. Veio mais gente; moradores de rua, seguranças, funcionários do metrô, executivos que estavam saindo do trabalho e duas mulheres da vida e um travesti alto.

A esta altura, o morto já tinha perdido a carteira, o celular, a gravata e a honra política; chegou a polícia. A polícia chamou o SAMU. O cadáver, mais político do que nunca, aguardava o rabecão e o seu esquife.

Passei bem um quarto de hora a admirar o espetáculo da morte na república. Depois me afastei, devagar, reflexivo de quem seria o cadáver, de que lado do Fla-Flu ideológico ele se encaixava, em vida e em morte; cheguei em casa e fiquei o resto da noite acordado. Procurei e procurei uma posição política e de ética em uma rede social da internet. Não achei nada além de julgamentos republicanos, esparsos e rancorosos. Perto de amanhecer, eu desisti; e fui ler as notícias esportivas.

Por Ricardo Novais

A bola que não entrou

 

Outro dia, acho que foi no pós-feriado do dia 15 de Novembro, eu estava vendo pela tevê o jogo Botafogo x Chapecoense. A Chapecoense venceu, em plena Arena da Ilha do Governador, pelo placar de 2 a 0. Eu vi o Cleber Santana jogar demais naquele dia; no primeiro gol, ele colocou a bola, praticamente com as mãos, para o Kempes assinalar. Os dois estão mortos.

Lembro-me que, naquele dia, tive muita saudade do Cleber Santana defendendo o meu Santos; eu gostava dele. Foi um bom jogador!

Alguns da crônica esportiva e da torcida matutam: “E se aquela bola que o Danilo defendeu entrasse? Não teria a tragédia...”. Por certo, matutam errado. A tragédia não é a bola não ter entrado, a tragédia é o imponderável. Não há derrota! Não há derrota nem no jogo que levou a Associação Chapecoense de Futebol à primeira e histórica final internacional, nem na defesa milagrosa do goleiro Danilo e nem na tragédia.

O futebol não é apenas um esporte. O futebol é um reflexo, caricato, da vida. É uma música de Moraes Moreira com saudades do Zico; é a comemoração da vitória de ser campeão depois de ser rebaixado; é um clube do interior de Santa Catarina levando uma cidade inteira aos extremos das emoções, de alegria eufórica à tristeza profunda. Futebol é o imponderável!

Bem faz o Atlético Nacional, de Medelín, em reconhecer a Chapecoense como legítima campeã da Copa Sul-americana. A rivalidade da disputa do jogo ficou no apito final de um voo derradeiro; do que poderia ter sido, mas não foi; do que poderia ser sonhado, mas não será; bola parada, estática, em seus últimos lances como naquela bola que não entrou defendida pelo Danilo. Nem toda bola vinga em gol.


Por Ricardo Novais

Carta ao leitor

Van Gogh - Arquivo BRN.
Leitor, 

Caro amigo, compreendo e concordo com quase tudo que pensaste. Não acredito mesmo no comunismo, entretanto, também não creio que seja um problema político as mazelas sofridas pelos povos, sobretudo os dos mais explorados. Estais certo, por outro lado, o liberalismo econômico é reduzir tudo à superficialidade. Mude-se o regime político, nada adianta. Como diria o velho Machado: "Que vem lá? É um papagaio? Não, é a república". Penso que o viés de nossa desgraça é o próprio ser humano, talvez ainda não esteja devidamente aperfeiçoado - sabe-se lá. Fora de nossos aposentos nos parentamos vaidade, arrogantes que somos, donos de verdades que não temos, ciosos de uma desgraça prudente; eis toda origem de nosso poder calhorda e repugnante. Nisto vale uma única crítica de Saramago.

Com relação à obra de literato, esta não a julgo - creio que só o tempo futuro haverá de fazê-lo. Ainda assim, seria eu doidivano se não respeitasse o escritor; grande romancista, grande contista! Grandessíssimo! Ocorre que não me agrada tal literatura; assim como um Alencar, pelo que consta, já é julgado pelo tempo. Senhora do tempo... A escrita refinada não combina com meus olhos que leem tudo com espírito lascivo e pessimista. Sim, leitor, é uma desgraça isto! Não me julgue também, querida leitora. Algumas almas preferem os estilos que só contam a verdade pela metade, saber tudo as desagradam. Vê, não é minha culpa.

E no caso das religiões... Convicções são convicções, assim como tudo é tudo - ou nada. Eu penso que todas as religiões são boas, desde que não subestimem o controle remoto da televisão. Sabemos que quase todas as ideias proveem de Deus, mas algumas vieram da curva prazerosa do diabo; e Deus e o diabo são os rótulos de tudo, desde as garrafas de vinhos das melhores uvas até as meias-calças das mulheres bonitas e que gostam de viver; Deus e o diabo são os rótulos sagrados dos desavisados, estejam eles vivos ou mortos.

Eu gosto dos rótulos, são divertidos; superficiais, concordo, mas divertidos.


Por Ricardo Novais

Um cortejo

"Golconda", René Magritte.

Morreu-lhe o pai. Era uma manhã bastante comum e, de repente, fez-se extraordinária. Viver é difícil... Era necessário reconhecer o corpo, o corpo do próprio pai. 

- Defunto? - questionou-se.

Lembrou-se que logo de manhãzinha havia tomado café preto na padaria de esquina, com o padrinho, talvez algum irmão, tinha mais alguém presente. Desfez a lembrança do café e desandou à casa das necrópsias. Morreu-lhe o pai.

A hora demorava minutos eternos. Aguardou o tempo para sempre e ainda assim viu faltar alguns minutos; constatou, a vida há sempre de ser curta... Curtíssima!

Leitor, interrompo o conto para uma palavra íntima contigo. Sinceramente, desejo que esteja longe a tua morte, mas já pensou em que músicas quer que toquem em seu velório? Músicas bonitas, naturalmente; réquiens são assombrosos! Digo, confessando-te também sobre a questão, que em meu velório não gostaria de que rezassem a cartilha dos ofícios religiosos; nada de céu ou inferno, menos ainda purgatório que terei que despender recursos para a propina da salvação.

Tornando ao conto e à via dolorosa. De repente, viu-se seguindo, a certa distância, o carro fúnebre que transportava o morto; este rabecão era surpreendentemente branco com prefixos fúnebres das laterais pintados à cor preta.

- Que dor! - afirmou-se.

Era um cortejo quase solitário, embora não estive sozinho. Há uma multidão de homens, homens diferentes; disse certa vez um artista cujo nome não me recordo. O séquito da cidade sendo percorrido por homens diferentes a avistar-se todas as suas luzes débeis das ruas. Ruas e ruas de um asfalto molhado, como de costume, embora mais funéreo, de um acachapante calor no meio daquela geleira humana. A garoa a cair sobre os telhados das casas e sobre as paredes sem rostos dos prédios, com força; primeiro ao crepúsculo e depois ao firmar do dia como um tributo sincero e acolhedor de seu sentimento à abdução súbita.

Anoiteceu novamente. Lembrou-se outra vez da morte. Morte. Viu-se ao espelho, percebeu a própria alma e de algum outro. Escutou a garoa batendo à janela. Nesta cidade a garoa são lembranças que pertencem ao primeiro fio de vento que sopra o trovão infinito. Pois que tudo cabe no além-túmulo, até a vida; cabe também o último alento, o último assopro do juiz, o último gol do artilheiro, o último beijo da mulher amada ou o último gole de cerveja. Será que no outro mundo há cerveja? Não sei. Sei é que, como bem julga o amigo leitor e a amiga dona leitora, também se morre em vida, porque, muitas vezes, a vida inteira cabe dentro de pouca coisa, como um fone de ouvido dentro de um trem a percorrer uma extensão de trilhos eternos.

A vida e a morte, jazem separadas; por fim, lê-se no epitáfio.

Por Ricardo Novais

Panelaço

Google Imagens.

Houve um pronunciamento do governo em rede nacional de rádio e tevê. Um barulho ensurdecedor de panelas sendo batidas ou em outras panelas ou em tampas de panelas diversas e que vinha das janelas vizinhas, irritava-me; era um momento de escrita. O leitor, que também é autor, bem sabe o quão o barulho agudo, uniforme ou disforme, pode prejudicar a saúde de um texto; de modo que me perdoe quem lê estas linhas mal acabadas, foram escritas sob a pressão dos adversários do governo.

Por certo que cada panela tem a sua tampa e esta se encaixa bem à comida que se cozinha ou que se estraga, apodrecendo pelo excesso de água, feijão ou macarrão gourmet; certo também que existem panelas mais profundas que outras. Aquelas que batiam, pelo som que ecoava delas, poder-se-ia dizer rasas, de pouca superfície e de muito teflon.

- Dita, vai à janela, por favor, e veja o que está acontecendo?

- Estão protestando, amor. Culpa do governo! Culpa dos desmandos do PT!

Não pude escrever. Fiquei escutando o barulho. Não liguei a tevê. O que o governo dizia não me interessava, eu precisava escrever. Então resolvi deitar no sofá e esperar. O tédio da escrita não é menor que o tédio da panela vazia; sim, pois percebi depois que nos bairros onde as panelas ficam cheias a custo não há o direito republicano do panelaço.

Esperei pouco, verdade. As panelas de pressão iam se cansando rápido, são pesadas e não foram feitas para fazerem macarrão gourmet. De modo que o barulho cessou-se, quase, completamente; não fosse o barulho de uma única panela vindo de um lugar incerto.

- E esse maluco que não deixa as pessoas em paz. Vou matar este cara! Que horas são agora, Dita?

- Nove e trinta e três, José Carlos.

Passara das nove e meia da noite e o barulho singular persistia. Percebi vozes no corredor. Não saí do apartamento, coloquei a cabeça para fora da janela e constatei todas as bocas famintas sem as panelas, curiosas e irritadas, perguntando-se de onde vinha o barulho. Resolvi abrir a porta de casa. Afinal, também é papel de autor a investigação, como certa vez me ensinou a dona leitora, que nos acompanha em silêncio.

- O que está acontecendo? – questionei a uma senhora magra e com nariz esbranquiçado por algum pó de maquiagem.

- Ora, não sabemos. Tem algum morador batendo uma panela a mais de uma hora, sem parar; e já é tarde... As crianças não dormem... Meu marido dá aula cedo na universidade... Precisamos descansar para poder trabalhar e produzir... Vou matar este cara! Que disparate!... Mas também, esse país de merda merece esses políticos...

- Não me parece que seja neste andar, acredito que seja no andar de cima. Vou matar este cara! – conjecturou um sujeito gordinho, parecido com uma porpetinha que se vende em boteco, e cortando a fala da velha de nariz branco.

- Culpa do PT! – comungaram os dois e os demais. Eu nada disse, apenas cruzei os braços e olhei para o elevador fingindo procurar alguma pista. Calma, senhor leitor politizado, não me tome por mau cidadão e eleitor de cabresto. Sou como o cajado descrito no Salmo 23, prezo pela segurança própria e do rebanho.

Dito isto, explico que os moradores incomodados começaram a ter hipóteses diversas que iam se alastrando por todos os andares; então descemos, todos, Dita veio junto, até o térreo. Lá havia já uma pequena multidão, olhavam para cima tentando identificar de onde vinha o pandemônio. Sim, senhor leitor mais atento ao dilema político, tem razão: de repente, os mesmos que antes protestavam batendo panelas contra o governo começaram a pedir ordem contra o paneleiro solitário que perturbava a paz e a boa convivência da comunidade do prédio.

O síndico, pressionado pelos moradores, saiu acompanhado de dois porteiros e mais cinco ou seis, talvez sete moradores; deu ordem expressa para que os demais aguardassem no térreo. Um quarto de hora se passou, uma ambulância estacionou na frente do edifício central.

Entraram os paramédicos do SAMU, embarcaram no elevador social correndo e carregando uma maca vazia e objetos salutares. Alguns minutos eternos depois se percebiam os passos descendo a escada. Consegui ver apenas a maca, passando célere pelo saguão, carregando um homem ensanguentado; logo atrás algo surreal: um sagui acompanhando a maca e batendo uma frigideira em uma caçarola, andava devagar e sem que ninguém o impedisse. Incrivelmente, o pequeno macaco entrou na ambulância. A sirene foi sumindo, sumindo no desafinado burburinho da cidade, e levando, julgo que ao hospital ou ao necrotério, o homem ferido ou morto e o macaquinho com suas panelas, quais não eram mais possíveis de se ouvir se ainda batiam, visto que na lei da vida das panelas o barulho urgente e imperativo as sufoca.

E foi só isto, nada mais. A pequena multidão dispersou-se rápido. Reinou no condomínio uma sepulcral ordem e a paz. Tornei a escrever naquela noite.


Por Ricardo Novais
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